Bagdá, a cidade que já foi Luz
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| Regozijo, tela de Jawad Selim | |
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Bagdá, a capital do Iraque, teve boa parte da sua infra-estrutura urbana destruída pelos bombardeios provocados pela aviação norte-americana durante a Guerra do Golfo, fato que a deixou isolada de quase todo o mundo. No passado, porém, foi diferente. Construída pela fé islâmica, ela foi a primeira cidade planejada pela nova religião com a clara função de ser a catapulta para que a palavra do profeta Maomé fosse lançada para as terras da Índia e da Ásia.
O plano da nova Bagdá
Por volta do ano de 140 do calendário muçulmano (762 pelo calendário cristão), o califa Al-Mansur chamou dois renomados astrônomos, um persa e outro judeu, para que projetassem a nova capital do seu império. Ele era o segundo governante da recém-implantada dinastia dos abácidas que, em 750 d.C., depois de se revoltar contra o ramo omíada da família do profeta Maomé, havia manifestado a idéia de construir uma cidade que expressasse o vigor e a energia do islamismo renovado. Em pouco tempo, apresentaram-lhe o projeto urbanístico. Tratava-se e uma urbanização circular cujas portas voltavam-se para os quatro cantos do mundo. O nome a ser dado era Madinat Al-Salãm, a Cidade da Paz, e seria construída onde outrora ficava a aldeia de Bagdá. Situada nas margens do Rio Tigre, justamente no momento em que este mais de aproxima do seu rio irmão, o Eufrates, a sua posição geográfica era exemplar, pois permitia-lhe o controle das férteis terras ribeirinhas, o domínio da desembocadura de ambos os rios, o canal de Chatt-el-Arab, bem como o porto de Bassora, a atual Basra, situada a 400 quilômetros mais baixo.
A expansão do Islã
O deslocamento da capital do Império Árabe de Damasco para Bagdá em 762 d.C. não se devia apenas a terem os omíadas se tornado licenciosos e relapsos. Acontece que o movimento de expansão muçulmana para o Ocidente, depois de ter anexado as terras do norte da África e da Península Ibérica, foi detido por Carlos Martel, comandante franco, na batalha de Poitiers, em 732. Os mouros confinaram-se então nas terras espanholas, de onde só saíram depois de minguar lentamente, após 700 anos. Detidos no Ocidente, o impulso voltou-se naturalmente para a Ásia Central e o Oriente. Em pouco tempo, os califas de Bagdá adonaram-se do Golfo Pérsico e levaram a palavra do Corão para o Paquistão, Indonésia e Ilhas Filipinas, chegando até a estabelecer uma próspera colônia árabe na cidade chinesa de Cantão.
A fundação da Casa da Sabedoria
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| Mesquita de Qairawan, Bagdá | |
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Sentindo a necessidade de enriquecer o Islã com a sabedoria de outras culturas, especialmente a persa e a grega, os califas de Bagdá transformaram a cidade num extraordinário centro cultural, numa verdadeira luz do Oriente. Em 832, Al-Mamum criou a Bayt al-Hikma, a Casa da Sabedoria, que, segundo nossos registros, deve ter sido uma das primeiras instituições especializadas em traduções. Foram convidados para tal ofício sábios de fé diversa da muçulmana, tal como o cristão-árabe Hunayn Ibn Ishãq, que formou uma verdadeira dinastia de tradutores, vertendo obras do grego para o siríaco e para o árabe. Foi assim que preservaram-se os trabalhos de Aristóteles, de Platão, de Galeno, de Hipócrates, de Euclides ou ainda do alexandrino Ptolomeu. Enquanto a cultura grega era anatematizada pelos padres da Igreja cristã medieval, era honrada e cultivada pelos homens sábios de Bagdá.
Bagdá, centro de saber
Em pouco tempo a cidade tornou-se centro de uma interminável peregrinação de estudantes que vinham de todas as partes do Islã para sentar-se próximos aos
faylasuf, os filósofos, para beber-lhes a ciência. O saber deles era enciclopédico: homens como Al-Kindi (796-899) e Al-Farabi (870-950) podem ser considerados como os fundadores de um conhecimento verdadeiramente universal, enquanto Ibn Kaldun consagrou-se na história e Al-Khwarizmi (introduziu o conceito de álgebra na matemática). Apesar dos sábios de Bagdá forjarem toda a terminologia técnica da
Kalam, a teologia islâmica, sofreram acirrada oposição de fundamentalistas como Ibn Hanbal, um reacionário que rejeitava todas as descobertas da ciência exata e da especulação filosófica por considerá-las heréticas e próximas do ateísmo. Mas os trabalhos da Casa da Sabedoria continuaram e serviram de base para que, em 1066, o vizir persa Nizam al-Mulk fundasse a primeira universidade árabe, que recebeu o nome de Nizamya.
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| Al-Farabi, Avicena, Ibn Kaldun e Al-Khwarizmi | |
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A projeção de Córdoba
Desejoso de tornar seu califado de Córdoba, na Espanha, cada vez mais autônomo, o governante omíada Abdur-Raman II determinou que se adquirisse em Bagdá tudo que fosse referente à ciência grega e árabe. Pouco tempo depois, em 1085, quando da reconquista de Toledo pelos cristãos, ali também foi instituída uma oficina de tradutores que passaram a verter os textos árabes para o latim, redescobrindo os sábios gregos para a Europa. Outra porta para a cultura greco-árabe abriu-se pela iniciativa o Imperador do Sacro Império, Frederico II, que fundou a Universidade de Nápoles em 1224, estimulando todo o tipo de tradução para o latim. O mais belo fruto da academia napolitana foi São Tomás de Aquino, que lá estudou até 1243 e que não só lutou para que Aristóteles fosse aceito nos círculos universitários e teológicos europeus, como realizou a mais poderosa construção intelectual do Ocidente medieval: a Summa Theologica, de nítida inspiração árabe.
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| Beduínos da região central do Iraque | |
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Incompreensão
Dessa forma, a sabedoria e ciência árabes - que dinamizaram a cultura ocidental nos tempos obscuros da escolástica cristã, quando a Europa vivia num vale de sombras -, foram as responsáveis indiretas pelas descobertas de Copérnico, de Kepler e de Galileu, os pioneiros da moderna ciência. Porém o ódio teológico que tem separado cristãos e muçulmanos durante esses últimos séculos terminou por impedir que o Ocidente reconheça os méritos da civilização maometana. As países islâmicos não só foram colonizados pela potências coloniais européias como seus anseios de independência e autonomia, que se tornaram cada vez mais crescentes depois de 1918, foram interpretados como equívocos conduzidos por radicais e fanáticos.
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