terça-feira, 15 de março de 2011

Cômodo, o gladiador


Cômodo, o gladiador
Lúcio Aurélio Cômodo, imperador romano aos 19 anos de idade, no ano de 180, apesar da esmerada educação que seu pai, o rei-filósofo Marco Aurélio lhe proporcionou, tornou-se uma figura das mais representativas da perversão que o poder absoluto provoca nos homens. Enquanto o pai foi homem de letras, Cômodo deliciava-se com as lutas de gladiadores, sendo ele mesmo um praticante nesta arte de matar. Morreu em 192, fruto de um conspiração palaciana, depois de um reinado de treze anos de terror e vergonha.


Cômodo (161-192), imperador cruel e hedonista


"A cidade despedaçada não era mais um todo conjunto; e como se era cidadão como uma espécie de ficção....não se via mais Roma com os mesmos olhos, não se tinha amor pela pátria, e os sentimentos romanos não existiam mais."

Montesquieu - Grandeza e decadência dos romanos, IX, 1734

Caio, César, Calígula
Suetônio disse que Calígula pensou indicar Incitatus, sua montaria, como cônsul ânuo. Um século e meio depois dele, Marco Aurélio fez pior, legou o império romano para seu filho Cômodo. Enquanto o imperador louco nomeou um irracional de quatro patas; o outro, o imperador sábio, um de duas patas.


Calígula(12-41), a cara de menino escondia sua perversão
É, por vezes, peça que o destino prega em pais ilustres ter catástrofes por filhos. O próprio Calígula, demente, incestuoso, sanguinário, nascera de varão valentíssimo e honrado. Germânico, seu pai, cônsul e general, era ilustrado em literatura latina e grega, língua em que cometeu algumas comédias que perderam-se no tempo, e também fora um notável comandante de tropas, adorados pelos legionários e pelo povo romano. Morrera moço, aos 34 anos, dizem que envenenado. Teve sorte em não ver no que o filho iria se transformar. Quando Caio César, dito Calígula, veio à luz num quartel de inverno no ano 12, um versículo pressagiou: "Nascido nos acampamentos, nutrido nas batalhas paternas, tudo pressagiava um príncipe assinalado". Mas não demorou muito para que se visse que ele "não conseguia dominar sua natureza feroz e depravada", fazendo com que vivesse para "a sua infelicidade e a infelicidade dos outros", como asseverou certa vez Tibério, o imperador que o adotara.

A breve vida de Cômodo
O mesmo poderia dizer-se de Lúcio Aurélio Cômodo, nascido 150 anos depois. O seu pai era um assombro. Era o sonho de Platão: um rei-filósofo. Marco Aurélio (121-180), não só admirava os sábios gregos, era ele mesmo um pensador, dos que são apontados até hoje nos cânones da filosofia ocidental. Dado a coletar preceitos de ordem moral, extraídos da visão estóica que adotara, publicou-os com o título de Meditações, que tornou-se um clássico da literatura filosófica.
Alma benigna, tinha especial desvelo pelo seu único filho homem, a quem ele esperava orientar pelos elevados princípios da escola de Zenão. No entanto, o jovem Lúcio Aurélio, criado como Calígula, em meio ao vozerio chulo dos acampamentos militares e ao som das trombetas e gládios de guerra, decidiu-se pela espada e não mais pelo livro. Quanto mais o pai refletia, mais o filho se embestava.
Gibbon disse que foi o próprio Marco Aurélio quem arruinou o filho, ao torná-lo parceiro do poder quando ele ainda era um adolescente. Porém, o mesmo Marco Aurélio fora ainda bem moço iniciado nas coisas do estado por Antônio Pio. Mas o filho não saíra o pai. Cômodo, imperador aos 19 anos, desatinou-se no trono imperial. A seu favor, diga-se, que tudo começou com um atentado fracassado contra a sua vida. O sicário, antes de tentar apunhalá-lo numa das saídas de um anfiteatro, gritou "O Senado vos manda isto!


O atentado e a demência
Apesar do facínora ter confessado em meio a tormentos que a mentora do golpe fora Lucila, a própria irmã do imperador, Cômodo dali em diante, "incapaz de piedade ou remorso", tomou-se de uma desconfiança doentia e cruel contra a elite romana. Matou todos de quem suspeitou. Entregou a administração do governo a favoritos, primeiro ao pretoriano Tigito Perenis, depois a um escroque chamado Cleandro, e fechou-se no seu harém. Mais de 300 mulheres e mancebos satisfaziam-lhe os caprichos. Por dessas ironias das coisas, o pai estóico gerou um monstro hedonista. O casto imperador legou a Roma um príncipe devasso.
Dos braços das amantes ele só saltou para arena, onde, para escândalo do mais inexpressivo plebeu, além de gastos exorbitantes com jogos, meteu-se em lutas de gladiadores. Ele mesmo ofereceu mais de 700 combates, adorando ver o sangue por todo os lados. Os espetáculos de circo, o rugido homicida da multidão nas arquibancadas, o grito das vítimas, o cheiro forte das feras soltas, o pó encharcado em vermelho, tudo isso o embriagava. Em seu epicurismo radical e depravado, ordenou que se punisse com a morte quem ousasse chegar perto dele com más notícias. Chamou-se de Hércules, mas não evitou que Márcia, uma das suas favoritas, o drogasse, e que, em seguida, um lutador fortíssimo, a mando de Emílio Leto, o prefeito do pretório, o estrangulasse, encerrando, em 192, um reinado que por treze anos envergonharia Roma ainda por muito tempo. Cômodo, como se viu, foi a perversão e não a meditação de Marco Aurélio.

Quadro cronológico de L.Cômodo

AnoAcontecimentos
177Lúcio Aurélio Cômodo é chamado, aos 16 anos, para partilhar a gestão do império romano com o seu pai, o imperador Marco Aurélio
180Marco Aurélio morre em Viena, pondo término a Era dos Cinco bons Imperadores (Nerva, Trajano, Adriano, Antônio Pio e M. Aurélio). Cômodo aos 19 anos é sagrado imperador. Tratado de Paz com os germanos quadri e marcomanos, para pacificar a região do Rio Danúbio. Cômodo fixa-se então em Roma
182Atentado contra a vida de Cômodo. Lucila, sua irmã, junto com alguns senadores, tenta eliminá-lo. O fracasso do complô torna Cômodo paranóico e desconfiado. Perseguição aberta aos suspeitos. O governo é entregue a favoritos.
184Grave crise nas finanças imperiais. Cômodo adota a política das "benevolências", extorquindo dinheiro e confiscando o patrimônio dos ricos.
185Execução de Tigito Perenis, o chefe pretoriano que acumulava a governadoria, acusado sem provas de traição. Início da administração de Cleandro, um escroque, corrupto e perdulário. Cômodo lança-se em grandes gastos em jogos, circos e lutas de gladiadores, das quais também participa.
190Morte de Cleandro durante um amotinamento popular em Roma. Devido a uma série crise de abastecimento de grãos, a plebe se revolta. Gastos de Cômodo em luxo e excentricidades continuam. Comportamento errático e ilógico do imperador. São cada vez mais visíveis os seus sinais de perturbação mental. Numa homenagem a si mesmo, altera o nome da capital imperial para Roma Colonna Commodiana (a colônia de Cômodo).
192Assassinato de Cômodo. Márcia, sua amante, em conluio com o prefeito pretoriano Emílio Leto, mandam estrangular Cômodo em seu quarto. O Senado romano indica o general Públio Pertinax como o novo imperador.

Bibliografia

Carcopino, Jerôme - A vida quotidiana em Roma no apogeu do Império, Lisboa, s/data.

Gibbon, Edward - Declínio e Queda do Império Romano, São Paulo, 1990

Mommsen, Theodor - El mundo de los Cesares, México,1945

Montesquieu, Charles, barão de - Grandeza e decadência dos Romanos, São Paulo, 1968

Suetônio - A Vida dos Doze Césares, Rio de Janeiro, s/data

Veyne, Paul - Le pain et le cirque: sociologia historique d'un pluralisme politique, Paris, 1976

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