terça-feira, 15 de março de 2011

Rio Grande do Sul, o poncho e a pólvora


Rio Grande do Sul, o poncho e a pólvora
Um gaúcho (tela de Juan M. Blanes, 1875)
A história da ocupação e do povoamento do Estado do Rio Grande do Sul, o mais meridional do Brasil, está demarcada pela questão fronteiriça. Região limite entre dois Impérios - o Espanhol, com sede em Buenos Aires, no Rio da Prata, e o Português, com o Rio de Janeiro - , o chamado Continente de São Pedro do Rio Grande do Sul, desde o século XVII, foi permanentemente disputada pelas duas coroas ibéricas. Ter-se tornado zona de guerra, de combate intermitente por quase dois séculos, marcou a vida política da mais conturbada das províncias do Imperio do Brasil, criando-se uma cultura muito própria, assinalada por guerras civis violentas - tal como a Revolução Farroupilha, de 1835, a mais longa da nossa história - desconhecidas no restante do Brasil.

A questão dos limites
Pelo Tratado de Tordesilhas de 1493 - que dividira o mundo de então, recém aclarado pelas viagens de Colombo -, a linha que separava os dois reinos católicos da Península Ibérica passava, aqui no Brasil, na sua extensão meridional, ao largo do litoral do atual Estado de Santa Catarina. Teoricamente, portanto, a área que viria fazer parte do Rio Grande do Sul, pertencia pois aos espanhóis. Portugal, por sua vez, sempre procurou estabelecer como sua real fronteira, como limite extremo do seu império na América do Sul, não uma linha abstrata, mas sim a margem esquerda do Rio da Prata. Todos os conflitos entre o Estado do Brasil e seus vizinhos do Prata foram decorrentes desse antagonismo sobre quais eram os verdadeiros marcos de cada um: o traço determinado pelo Tratado de Tordesilhas ou a curva do Rio da Prata. O Rio Grande do Sul foi, desde o seu principio, ao contrário dos demais estados brasileiros, uma “fronteira quente”, isto é, local de disputa militar e diplomática , foco de tensão armada que se estendeu dos finais do século XVII até o século XIX.
Missões Jesuíticas
A família sagrada (arte missioneira)
Acredita-se que os padres da Companhia de Jesus tenham atravessado o rio Uruguai por volta de 1626, sendo que o Pe. Roque Gonzales foi martirizado pelos indígenas em 1628. Na sua ocupação, os inacianos adotaram nas suas estâncias, para fixar os nômades guaranis do território, a alternância da cultura da erva-mate com a pecuária. Em 1637, o bandeirante Raposo Tavares, atrás de mão-de-obra cativa, destruiu as reduções situadas entre os rios Taquari e Caí, obrigando os jesuítas a refluírem para a margem direita do Uruguai. A partir de então, o gado, abandonado, sem interesse para os bandeirantes, esparramou-se , tornando-se gado “chimarrão”, isto é gado selvagem.
Formaram-se então as Vacarias do Mar , que estendiam-se até as margens do Rio da Prata, e as Vacarias dos Pinhais, manadas de gado selvagem que ocuparam boa parte do Planalto Central e dos Campos de Cima da Serra, e que iriam atrair os gaúchos. O verdadeiro apogeu das Missões, revitalizadas no século XVIII, ocorreu entre 1720-56, quando se formaram os 7 Povos das Missões (S. Nicolau, S. Ângelo, S.Luís, S. Lourenço, S. João Velho, S.Miguel, S. Borja), situados na parte oeste do estado, até que ocorreu a destruição deles durante as Guerras Guaraníticas, cujas operações bélicas deram-se pela expedição luso-espanhola de 1753-6, tendo no cacique Sepé Tiarajú , o principal defensor das reduções indígenas. A chamada “época de ouro” das missões foi possível porque os descendentes dos bandeirantes, mudando de afazer, tornaram-se garimpeiros nas Minas Gerais ou tropeiros e criadores de gado bovino e muar. A região dos Sete Povos das Missões no Rio Grande do Sul haviam passado ao controle português pelos Tratados de Madri, de 1750, e confirmado pelo de Santo Ildefonso,, de 1777, mas efetivamente só começou a ser ocupada em 1801.
Autoridades portuguesas
Planta do forte Jesus-Maria-José, local do nascimento do Rio Grande do Sul
Com a fundação, ordenada pelo rei de Portugal, da estratégica cidade de Colônia do Sacramento - tarefa cumprida por Manuel Lobo, governador do Rio de Janeiro, em 26 de janeiro de 1680 -, bem em frente a Buenos Aires, teve início uma longa e turbulenta rivalidade que estendeu-se por século e meio entre o Império Lusitano e o Espanhol. A nova urbe acirrou ainda mais a luta pelo controle do Rio da Prata, escoadouro de riquezas e portal de entrada para o coração do continente sul-americano. Conflito intermitente, onde guerras eram intercalados com tréguas e tratados, que se prolongará , inclusive após a independência da Argentina e do Brasil, até 1828, com o Tratado do Rio de Janeiro que acertou o reconhecimento da autonomia da Republica do Uruguai. A Capitania D’El Rey de São Pedro de Rio Grande do Sul, surgiu, pois, em função de resguardar a retaguarda dos interesses portugueses no Rio da Prata. Por isso, para melhor poder apoiar logisticamente a cidade de Colônia, os lusos, comandados pelo brigadeiro José da Silva Paes, fundaram o Presídio de Jesus-Maria-José Rio Grande, em 1737 , e distribuíram estâncias entre os oficiais ao longo da linha que, partindo do litoral atlântico, atingia o rio Uruguai.


 
Açoritas
Dando seguimento à ocupação por meio de colonização, acerto possível após a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, os lusos trouxeram das ilhas dos Açores os “casais de número” que receberam terras na região da Lagoa dos Patos, Rios Guaíba e Jacuí, povoando Porto Alegre, Triunfo e Cachoeira. Inicialmente os açorianos se dedicaram a agricultura (triticultura), mas abandonaram-na em 1820 para voltar-se para a pecuária, aproveitando-se do crescimento da indústria do charque, implantada por volta de 1780, pela iniciativa de José Pinto Martins, nos arredores de Pelotas e , em seguida, em S. Amaro e Triunfo. A data de 1756 assinala a fundação de Porto Alegre como vila. Com a invasão castelhana de 1763, a capital deixa de ser Rio Grande, que ficou 13 anos nas mãos da administração espanhola, mudando-se para Viamão e depois para P. Alegre. Com a expansão das charqueadas ocorre a importação de mão-de-obra escrava, fortemente concentrada em Pelotas.
Colonização alemã
Os primeiros imigrantes vindo da Alemanha chegam a partir de 1824 e foram instalados na antiga Feitoria do Linho Cânhamo, nas beiras do rio dos Sinos. Alguns deles vieram como mercenários para lutar na Guerra Cisplatina, mas a maioria era composta de lavradores que receberam pequenos lotes de terras, em “linhas” e “picadas” ao longo do Vale dos Sinos e na encosta da Serra. Dedicaram-se à chamada “economia colonial”, o artesanato e a pequena indústria, tendo Porto Alegre como seu principal mercado. Era-lhes vedado ter escravos e seus direitos de liberdade religiosa , se protestantes, eram limitados.
Colonização italiana
Para os italianos, que chegam em 1875, são reservadas terras ainda menos acessíveis, as que se situavam nos altos da Encosta do Planalto Meridional, a serra gaúcha, tendo como núcleo de povoamento os “fundos de Nova Palmira”. Assentaram-se em Conde d’Eu e d. Isabel. Dedicam-se à extração de madeira, à vitivinicultura, à pequena industria e ao artesanato. Seu impressionante crescimento demográfico, no século XX, fez com que se desloquem para as regiões centrais e orientais do estado.
Atividades econômicas
Semeando os campos da Serra (tela de Pedro Weingarten)
As missões jesuítas e logo em seguida a formação das estâncias de lagunenses e vicentinos (paulistas que se deslocavam do norte), foram responsáveis pela introdução da pecuária no RGS. A estância correspondeu ao abandono das atividades predadoras feitas por gente selvagem do campo, os primeiros gaúchos, que abatia indiscriminadamente os animais apenas para extrair-lhes o couro e vendê-lo aos contrabandistas. A agricultura nesses primeiros tempos confinava-se ao plantio da erva-mate, herança dos hábitos dos índios guaranis..
Com a descoberta, nos começos do século XVIII, das lavras de ouro e de diamante em Minas Gerais e o elevado preço que os alimentos custavam nas regiões de garimpo, a pecuária virou uma atividade altamente rentável. Com a industria extrativista esparramando-se pelo Brasil central, formou-se o primeiro mercado interno significativo no Brasil colônia, ao qual as estancias gaúchas iriam atrelar-se, sendo essa uma das históricas razões econômicas da tensão entre o separatismo e o nacionalismo, vigentes até hoje no nosso estado (a economia gaúcha voltou-se para o mercado interno brasileiro, sendo pois, sempre simpática à medidas protecionistas).

Charqueadas e trigais

Nos finais do século XVIII, com a implantação das charqueadas na região de Pelotas e do rio Jacuí, um mercado bem mais vasto se abriu, pois, com a nova técnica da conservação de carnes, foi possível superar-se a exportação do gado em pé (bovino e muar). Era possível, doravante, ambicionar atingir, além do centro e do nordeste do Brasil, até os consumidores do mar do Caribe e dos estados sulistas dos Estados Unidos, visto que o charque era a alimentação básica dos escravos. Ironicamente, o alimento dos escravos era pago com...escravos. A chegada de levas deles ao território do Rio grande do Sul resultou, pois, da expansão da industria das carnes manufaturadas e salgadas, que se multiplicaram por Pelotas e beiras da Lagoa dos Patos e margens do rio Jacuí.
Com a vinda dos açoritas, desembarcados em 1752, a agricultura tomou um novo impulso com as plantações de trigo ao redor da cidade de Rio Grande, expandindo-se para outras áreas até ser destruída, ao redor de 1820, pela praga da ferrugem e pela ausência de um apoio governamental. Os açoritas, visto o desastre do trigo, tornaram-se então pecuaristas e charqueadores. A agricultura e a criação mais diversificada, de suínos e aves, só estabeleceu-se mais tarde com as colônias alemãs e italianas, entre 1824 e 1875, bem como foram elas quem trouxeram as técnicas industrias que permitem lançar os fundamentos da pequena industria do curtume, da metalurgia e da vitivinicultura. A pecuária de corte toma novo impulso com a criação dos frigoríficos estrangeiros, da Armour e da Swift, em 1917, tornando possível exportar carnes enlatadas e refrigeradas para o centro do país. O sucesso da chamada “economia colonial” deve-se preponderamente a distribuição de terras feitas entre os colonos, formando não apenas um dinâmico centro produtivo policultural, como também tornou-se um crescente mercado consumidor.

O gaúcho


Gaúchos no descanso ( tela de Enrique Castells)
A palavra “gaúcho”, o homem livre dos campos, foi aplicada inicialmente para definir um tipo humano arredio, o nômade do pampa, muitas vezes um desertor desobediente da lei e da ordem, que cavalgava ao Deus-dará numa área vastíssima, pelos “desertos”, formada por coxilhas, baixios ou canhadas, e matos capões, saltando sobre os arroios, banhados, sempre atrás de gado amansado ou chucro e de cavalos. Gente de laço e de doma, a sua cultura derivou de um amálgama entre os hábitos indígenas, adquiridos dos índios tapes, minuanos ou guaranis, e dos brancos iberos, resultando num caldeamento étnico muito próprio. Visto muitas vezes como “gaucho malo” ou como “ladrones, o Gente vagabunda que hiciese robos de ganados” nas áreas vizinhas a Montevidéu e Buenos Aires, tornou-se posteriormente símbolo do orgulho nacional (no caso dos uruguaios e argentinos) e regional (no caso dos sul-rio-grandenses). Deles disse José Hernandez “Não terá cova nem ninho, há de andar sempre fugido, sempre pobre e perseguido, como se fosse maldito; pois ser gaúcho..Caramba!...ser gaúcho é até um delito”(Martin Fierro, canto VIII, 230). Foram eles que, no transcorrer dos tempos, forneceram os escalões inferiores para as batalhas travadas entre portugueses e espanhóis e, depois por platinos e brasileiros, na luta pela posse do território que hoje pertence à Republica do Uruguai e ao Estado do Rio Grande do Sul.


Cronologia

1626 - primeiras reduções jesuítas no Rio Uruguai

1637 - destruição das reduções indígenas pelo bandeirante Raposo Tavares

1680 - Fundação por Manoel Lobo da Colônia do Sacramento, na margem esquerda do Prata, em frente a B. Aires

1737 - fundação de Rio Grande pelo brigadeiro José da Silva Paes

1750 - Tratado de Madri, Colônia do Sacramento é trocada pelas Missões

1752 - chegada dos açoritas. P.Alegre, fundada em 1756, torna-se com a invasão castelhana de Rio grande a capital definitiva do Rio Grande do Sul

1753 - início das Guerras Guaraníticas, destruição das missões. Fim da “época de ouro” das Missões (1720-56)

1776/7 - recuperação de Rio Grande. Colônia do Sacramento fica em posse definitiva dos espanhóis.

1824 - Colonização alemã do Vale dos Sinos

1875 - Colonização italiana do alto da Serra Gaúcha


Enfrentamentos ideológicos, políticos e partidários no RGS


Farroupilhas preparando-se para a carga (tela de Antônio Parreiras)
Ser uma fronteira "quente", permanentemente disputada, deu uma feição belicosa aos confrontos políticos e ideológicos do Rio Grande do Sul. Precisamente pelos limites do estado serem imprecisos, embaraçados pela vastidão das planícies, permitia as facções em luta procurar abrigo ou recursos em regiões muito além da fronteira. Era difícil para um força poder policiar um território tão amplo, permitindo com isso que as guerra tivessem larga duração, como deu-se com a Revolução Farroupilha, liderada por Bento Gonçalves, que, arrastando-se por dez anos , de 1835 a 1845, foi a mais longa das guerras civis brasileiras. A constância dos embates fez com que a exigência da polítização da população fosse sempre muito intensa, acirrando ainda mais os enfrentamentos partidários, criando uma cultura belicosa, de hostilidade entre os partidos, quase sempre polarizados em duas correntes poucas dispostas à conciliação, gerando cum clima propício à guerra civil.

Vocabulário:


Farroupilha: denominação de radicais na época do Império, termo pejorativo por que indicava representarem setores plebeus (farrapos)


Chimango (ou ximango): denominação vinda do Império, mas que na Republica foi dada pejorativamente (é um pássaro magro e rapinesco do sul do Brasil) aos republicanos de Borges de Medeiros, assim apelidado num célebre poema “Antônio Chimango”. Trata-se algo desprezível, feio e predador. Anteriormente, os seguidores de Castilhos, foram chamados de pica-paus, pássaro comum, vulgar.


Maragatos: o nome origina-se de uma região da Espanha ( Maragatia) de onde vieram imigrantes para o interior do Uruguai. Muitos deles tornaram-se peões nas estancias uruguaias e saiam para combater a mando dos seus patrões. O apelido era pejorativo, indicava eles serem estrangeiros, não-brasileiros


Trabalhista: origina-se do Labour Party da Inglaterra cujo programa foi adaptado por Alberto Pasquallini, o ideólogo do PTB gaúcho.

Bibliografia


Azevedo, Thales de - Gaúchos: a fisionomia social do RGS, Salvador, Livraria Progresso Editora, 1958
César, Guilhermino - História do Rio grande do Sul: período colonial, Porto Alegre, Editora Globo, 1970
Félix, Leiva Otero - Coronelismo, borgismo e cooptação política, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 1987
Franco, Sérgio da Costa - Júlio de Castilhos e sua época, Porto Alegre, Editora Globo, 1967
Love, Joseph - O regionalismo gaúcho, São Paulo, Editora Perspectiva, 1975
Pesavento, Sandra J. - República Velha gaúcha: charqueadas, frigoríficos, criadores, Porto Alegre, Editora Movimento, 1980
Reverbel, Carlos - Maragatos e Pica-paus: guerra civil e degola no RGS, Porto Alegre, Editora LP&M, 1985
Roche, Jean - A colonização alemã e o Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Editora Globo, 1969, 2 vols.
Santos, José Vicente dos - Colonos do vinho, São Paulo, Hucitec, 1978
Velinho, Moisés - Capitania D'El Rey, Porto Alegre, Editora Globo, 1964


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